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QUINTO SERMÃO: Gênesis 25.29–34
Tinha Jacó feito um cozinhado, quando, esmorecido, veio do campo Esaú e lhe disse: Peço-te que me deixes comer um pouco desse cozinhado vermelho, pois estou esmorecido. Daí chamar-se Edom. Disse Jacó: Vende-me primeiro teu direito de primogenitura. Ele respondeu: Estou a ponto de morrer, de que me aproveitará o direito de primogenitura? Então, disse Jacó: Jura-me primeiro. Ele jurou e vendeu seu direito de primogenitura a Jacó. Deu, pois, Jacó a Esaú pão e o cozinhado de lentilhas; ele comeu e bebeu, levantou-se e saiu. Assim, desprezou Esaú seu direito de primogenitura.
Ontem dissemos que Deus aprova e ratifica sua eleição, quando governa seus filhos por meio de seu Santo Espírito, e que ele os faz progredir na vida celestial, e lhes dá disposição para que desprezem o mundo e ergam a fronte para o alto. Por outro lado, que ele deixa a natureza humana despida quando solta os freios aos que são réprobos, de modo que se tornam, por assim dizer, bestas brutas, nada visualizando senão esta vida frágil e fugaz. Temos a confirmação desta doutrina na história que Moisés registra aqui. Pois, de um lado, ele põe Esaú diante de nós, que regressou dos campos de caça, tão faminto quanto um lobo; então ele não deseja outra coisa senão comer; e, acima de tudo, está disposto a vender sua primogenitura mediante um voto, e então renuncia sua primogenitura, contanto que, com isso, ele sacie seu ventre.
Ele, pois, sente tão elevada estima por um ensopado, que sua primogenitura nada significava em comparação com aquele. Ora, observemos (como já ficou dito previamente, e como veremos mais plenamente) que este não era um privilégio terreno, ou, seja, que ele teria uma dupla porção, e que seria promovido na casa de seu pai, mas também seria o líder da Igreja de Deus, esperando até que nosso Senhor Jesus Cristo se manifestasse para a salvação do mundo. Ora, ainda que isso fosse algo de suprema importância, contudo Esaú deu preferência ao seu ventre, e de nada mais cuida senão que tenha algo que comer.
Em contrapartida, Jacó, conquanto tivesse preparado seu jantar, ou seu ensopado (ainda quando fosse sua ressecção), e que tivesse o apetite aguçado para comer, contudo ele escolhe, antes, abster-se e defraudar-se, do que deixar escapar a ocasião de obter a primogenitura. Vemos, pois, que Esaú parecia mais um homem animalesco, que nada mais buscava senão saciar-se e nutrir-se; sim, e satisfazer bem sua cupidez. Jacó é um homem frágil, sujeito à fome e à sede. Não obstante, ele se refreia e lança seu olhar para além do mundo, e esquece o alimento corporal a fim de obter um benefício espiritual, o qual era de mais valor do que centenas, sim, do que dez mil vidas. Observemos sucintamente o que temos de aprender desta história.
Ora, é bem verdade que alguém, à primeira vista, pode pensar que isto não passava de uma diversão infantil. Pois, que problema havia em Esaú, depois de haver trabalhado e se esforçado tanto, sim, tentando trazer carne de veado para seu pai, sentindo-se cansado, a fome lhe impusesse que comesse? Tudo indica que isso não lhe fosse imputado como um erro. E novamente, em contrapartida, alguém poderia dizer que houve em Jacó crueldade, se seu irmão, em tal conjuntura, não fosse socorrido por ele, pelo menos com metade de seu ensopado? Pois ele não deveria ter delongado a queixa de seu irmão, até que clamasse fome, e sim deveria ter-lhe oferecido liberalmente daquilo que havia preparado para si. Pois se ele apenas visse um estranho enfrentando necessidade, extremamente cansado e fraco, ainda assim lhe teria dado algum repouso e esmolas.
No entanto, eis aqui seu próprio irmão, pois ambos nasceram da mesma madre. Contudo, neste caso, o abandona e não se digna em dar-lhe uma colherada de seu ensopado. É possível, pois, que se diga que Jacó foi demasiadamente descortês. Além disso, por que ele o deveria compelir a vender sua primogenitura? Pois aqui ele pôs, por assim dizer, a faca em sua garganta, e bem sabemos que as barganhas nem sempre oferecem resistência quando aí entra em cena alguma violência. Se os homens fazem algo por constrangimento, ou se prometem algo temerariamente, movidos por compulsão, não são obrigados a cumpri-lo. Vejamos, porém, Esaú que ora estava faminto, e nada mais podia fazer, tão trespassado, que nem sabia qual o significado de sua primogenitura.
Assim, pois, além da crueldade de Jacó, houve um lapso demasiadamente grosseiro. E, quando ele fez a barganha, a qual foi mediada por juramento, contudo esta, em hipótese alguma, deve ser assegurada por qualquer direito ou razão. Ora, não obstante tudo isso, não se menciona isto com o intuito de reprovar a Jacó, como se ele houvera cometido algum erro, ou ofendido seja a Deus, seja a seu irmão. Mas, por outro lado, o Espírito Santo aqui lhe dá testemunho de que ele nos mostra o modo de como buscar as coisas celestiais, e que, antes de tudo, devemos buscar o reino de Deus e renunciar nossos próprios desejos, ou então de tal maneira cativá-los e trazê-los em sujeição, para que não nos impeçam de visualizar perenemente o principal.
E, em contrapartida, é posto diante de nós o exemplo de Esaú (como o apóstolo mostra), até o fim: “nem haja algum impuro ou profano, como foi Esaú” [Hb 12.16]. Ou, seja, que não vivamos apegados à terra, mas que pensemos no que nos é prometido, a saber, no que pertence à vida eterna. Assim, pois, não devemos formar juízo desta história segundo nossa opinião natural, mas devemos pesar qual o fim e o propósito que aqui se busca, para que melhor extraiamos dela nosso proveito.
Ora, já dissemos, antes de tudo, que aqui Deus sela, por assim dizer, sua eleição na pessoa de Jacó, e que também ele mostra, na pessoa de Esaú, que este era membro dos que eram proscritos dele. Sem a menor sombra de dúvida, se Jacó não fosse governado pelo Espírito de Deus, ele se assemelharia totalmente a seu irmão Esaú. No entanto, vejamos bem como o Espírito de Deus lhe foi dado, e não a Esaú. Não acharemos esta diversidade, senão na singular e graciosa bondade de Deus. Assim, pois, saibamos que Jacó era conduzido por um sentimento santo, porquanto Deus o tomou do número e companhia de seus filhos, como igualmente Paulo afirma: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” [Ef 2.10].
Neste ponto ele não fala de todos os homens, em geral. É bem verdade que Deus criou a todos nós, sem exceção; mas há uma nova criação naqueles a quem Deus reforma e a quem ele purga de suas concupiscências malignas, com o intuito de os atrair a si e de os conformar à sua justiça, de modo que nada desejem além de honrá-lo e servi-lo de modo puro. Notamos, pois, que Deus opera em seus filhos uma segunda criação. Por isso devemos saber que, se Deus nos estende sua mão a fim de mostrar-nos o caminho da salvação, se ele nos grava de coragem para alegremente seguirmos avante, e igualmente nos fortalece para continuarmos a marcha, então com isso ele mostra que sua eleição não é sem propósito e frívola, senão que está saturada de efeito e virtude. Concluindo, quando ele nos abandona, e nos extraviamos durante toda nossa vida, passamos a ignorar a salvação de nossas almas, saibamos que neste particular ele nos grava com sua maldição. E assim aprendamos a tremer, na medida em que vemos os homens enfatuados em sua bestialidade, de modo que não conhecem seu próprio estado e condição, nem a que fim foram criados, nem para quê Deus os pôs no mundo. Ao vermos tudo isso, cumpre-nos, repito, tremer e orar a Deus, para que ele não permita que sejamos alienados dele, e sim que ele nos sustente sempre, e nos guarde, e que grave em nossos corações uma tal certeza da esperança que ele nos deu, que portemos neles a marca legítima de sua eleição, como se os homens espalhassem um pouco de cera sobre um selo, a forma do selo ficasse perfeita, mas a cera tivesse a forma e a imagem dele. Assim, quando nosso Senhor gravou seu temor em nossos corações, pela operação de seu Santo Espírito, e aquela obediência a ele como seus filhos devem viver e trabalhar para ele, isto é como se ele pusesse sobre nós o selo de sua eleição, e como se ele realmente testificasse que nos adotara, e que ele nos é por Pai; porquanto temos o penhor de sua graciosa eleição, ou, seja, o Espírito Santo.
Agora, porém, acheguemo-nos ao que aqui se focaliza particularmente. Lemos assim: “Tinha Jacó feito um cozinhado, quando, esmorecido, veio do campo Esaú” [v. 29]. Ele o afirma em termos que mais parecem desdém; e no entanto nisso vemos não que ele tivesse um paladar tão delicado e sensível, senão que já não podia mais, de tão exausto, que já não sabia o que fazer. Portanto, ele nada pede senão que seja saciado. E então suplica: “dá-me”. Como se quisesse dizer: “Ser-me-á suficiente que eu coma pão escuro ou branco, contanto que eu sacie meu estômago; mesmo que seja com bolotas; isso me é suficiente”. É possível que alguém encontre aqui algum indício com que justificar a Esaú; e é como se isso fosse suficiente para perdoá-lo. Ora, por quê? Nisto percebemos tanto mais que nossos desejos, por mais naturais e lícitos sejam eles, não obstante devem ser reprimidos quando houver alguma dúvida acerca da vida eterna; pois então devemos subjugar cada consideração, em preferência a relaxar a vida centenas de vezes, e então sair da vereda da salvação. Não basta, pois, que os homens se abstenham daqueles atos que são totalmente dissolutos e perversos, e dos quais se envergonhariam, mas inclusive de todo desejo que porventura tenham, sim, mesmo aqueles que são permitidos por Deus, e que não são totalmente condenados, contudo devem ser domados quando houver alguma confrontação com os benefícios espirituais. Mas disso ainda trataremos mais amplamente. No ínterim, cabe-nos notar este ponto: que Esaú não buscava grandes petiscos; ele viu o ensopado, de que aqui se faz menção, e nada pediu além de ser saciado com ele.
Ora, em pagamento, Jacó exige dele sua primogenitura. Se ele tivesse solicitado isso movido de ambição, e aquilo que não lhe pertencesse, indubitavelmente tal coisa não seria uma barganha. Em contrapartida, a malícia que ele demonstrou de modo algum poderia ter sido escusada; e, mais, isso equivaleria cometer ultraje e um ato de latrocínio, e com isso manter fechada a garganta de seu irmão, como se dissesse: “Se não me cederes tudo quanto te pertence, não te darei sequer um naco deste guisado; do contrário, perecerás”. A que extremo isto levaria? Jacó, porém, nada demanda de Esaú, senão aquilo que previamente lhe fora dado. Pois fora instruído sobre isso antes que os dois filhos nascessem, a saber, que Deus pronunciou a sentença de que era necessário que o mais velho servisse ao mais moço. Jacó, pois, no tocante a Deus, pela fé já possuía a primogenitura. É verdade que isso não o punha como juiz do mundo; mas a questão, aqui, diz respeito à parcela a que tinha direito, a saber, que ele sabia que Deus o designara como o primogênito, e declarara que a primogenitura já lhe pertencia. Assim, pois, ele não lesava Esaú de algo que era seu, mas, antes, solicita uma vez mais aquilo que era seu por direito, como se quisesse dizer: “Já que foste o primeiro a romper a madre, desprezas a sentença que Deus pronunciou, concernente a mim e a ti; mas aquilo que Deus decretou não pode ser revogado. Pois, quanto a mim, sempre guardo esta esperança de que obterei aquilo que me foi prometido; mas, quanto a ti, deves entender que eu levo mais a sério o serviço de Deus do que minha própria vida; portanto, vende-me tua primogenitura”.
Vemos aqui, sucintamente, que Jacó não estava obtendo um bem alheio pelo uso de fraude ou malícia, nem força a seu irmão a despojar-se daquela bênção que lhe pertencia, porém demanda que aquilo que Deus lhe dera fosse aprovado e ratificado entre os homens. Esta é a suma do que está registrado aqui. Portanto, aqueles que usam de extremo rigor a fim de tomar posse da subsistência de outrem, e engodar-se com o prejuízo de seus semelhantes, com base nisso não têm que fazer deles seu próprio escudo aqui; como vemos em tantos que espreitam uma ocasião de lesar um homem pobre, em extrema necessidade. Então caem sobre ele e o esfregam violentamente. E só farão barganha com ele depois de o virem arrasado, e dizem (os que vivem de espólios, como fazem os abutres sobre a presa): “Este homem deve passar por minhas mãos”. Então, um pobre homem que tiver apenas um campo, ou uma campina, se ficar endividado e não tiver como pagar, se ocorre de ser ele algum agiota, então lhe dirá: “Não encontro nenhum outro remédio senão vender-te uma parte, pois desta vez não tenho dinheiro”. E, no entanto, nesse meio tempo ele guardará o dinheiro em sua bolsa, à espera daquela ocasião propícia de o roubar, já que busca um meio de enganar seu semelhante. Comumente se vê que aquele que se vir arrostado por alguma miséria, será devorado, inclusive os ossos, quando que só eles contam com os meios de socorrer os que ora passam por necessidade.
Mas se esses deploráveis biltres (como eu já disse) encobrirem sua iniquidade na pessoa de Jacó, isso seria também um ato fútil. Pois Jacó não surrupiou para si a propriedade de outro homem, nem buscou engrandecer-se com o fim de empobrecer a seu irmão; senão que se garantiu da posse daquilo que Deus já lhe havia dado. A primogenitura já era propriedade sua, deveras não em conformidade com a ordem da natureza, mas porque assim aprouve a Deus. Visto, pois, que ele a ninguém enganou, com ninguém foi injusto, nem usou de qualquer rigor ou excesso para apossar-se do bem alheio, não devemos tomar daí algum exemplo e patrocínio para a prática das mesmas ladroagens e opressões que comumente se praticam entre os homens. E, visto que aqui a questão é sobre o benefício espiritual que Jacó busca, e não riquezas, nem suas comodidades, nem alguma honra terrena, a fim de subir acima de seu irmão; ele renuncia tudo isso; tudo isso lhe é indiferente; porém deseja tomar posse daquilo que Deus lhe prometera, a saber, que ainda que ele seja pequeno neste mundo, ainda que seja afligido, atormentado e devorado, e que os homens lhe façam muitas injúrias, isso lhe é indiferente, contanto que este inestimável tesouro lhe seja reservado, a saber, que de sua raça advirá a salvação do mundo, e que, também, ele é parte da companhia e comunhão dos filhos de Deus.
No tocante a Esaú, já vimos sua resposta naquilo que o apóstolo afirma, e naquilo que também já mencionamos, a saber, que ele era totalmente profano. “Estou a ponto de morrer [diz ele], de que me aproveitará o direito de primogenitura?” [v. 32]. Ao dizer que estava a ponto de morrer, e que de nada lhe aproveitaria sua primogenitura, vemos que ele era totalmente insensível e obtuso, e que ele [o direito de primogenitura] lhe era indiferente, contanto que pudesse viver bem nesta presente vida.
Vejamos ainda no que implica o termo profano, porquanto ele se opõe ao termo santo. E o que significa o termo santo? Ser santo é ser separado e designado para o serviço de Deus. Porque, no dizer de Paulo, o mundo inteiro está saturado de imundícia e iniquidade. E, quando aqui embaixo nossa conversação segue o padrão corriqueiro, isso nos macula com todo gênero de imundícia. Mas, para que sejamos dignos de filhos de Deus, cumpre-nos que sejamos separados, segundo a linguagem de Paulo no primeiro capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios. Compete a Deus congregar-nos a si. Porque, se andarmos por entre espinhos, isso significa que nos arranharemos a cada instante. Se caminharmos em meio à sujeira e lama, isso significa que vamos sujar-nos. Cabe-nos, pois, que vivamos separados. Mas (como eu já disse) o termo profano é contrário e oposto a isto. Então, o que fazer? É preciso que a pessoa atente bem para si mesma; sim, inclusive para seu corpo. Pois, da mesma forma como há em nós duas partes, a saber, corpo e alma, assim a vida espiritual procede quando sabemos para quê Deus nos chama, e por quê ele diariamente nos habita; ou, seja, para que sejamos herdeiros do reino celestial. Vejamos o que fazer para sermos santificados, segundo lemos: “Purificai-vos, sim, todos vós que carregais os vasos do Senhor”. E Paulo, evocando este texto, diz: “Tendo, pois, tais promessas”. Ou, seja, que Deus nos conta no número de seus servos e filhos. Atentemos bem, e purifiquemo-nos de toda e qualquer imundícia, seja do corpo, seja da alma.
Ao contrário disso, Esaú de outra coisa não cuidava senão de seu ventre; e ele mostra isso muito bem quando diz: “Estou a ponto de morrer, de que me aproveitará o direito de primogenitura?”. Sim, mas este [direito] visava à vida eterna, apontava para a herança celestial. No entanto, ele não tinha consideração por nada disso. Assim, pois, vemos que ele comeu como um cão [desvairado], ou, melhor, como um cão que mantém sempre seu focinho nos restos de comida, nada mais busca senão comer. Eis, pois, a disposição de Esaú, a qual nos é declarada nestes termos. E assim a exortação do apóstolo deve ser bem aproveitada por nós, ao dizer: “nem haja algum impuro ou profano, como foi Esaú” [Hb 12.16]. Pois vemos qual é a causa que nos leva a renunciar a esperança daquela salvação que Deus nos deu: quando nos deixamos enredar em nossos próprios sentidos, e em nossos desejos carnais, é indubitável que não temos nenhuma familiaridade com aquilo que pertence à salvação de nossas almas, a qual não desfruta de estima em nós; de sorte que não há nem palavra de Deus, nem promessa, nem qualquer outra coisa que estimemos levianamente quando somos tão profanos.
Ora, pois, sejamos muito atentos, quando formos excitados com algum desejo; então concluamos: “Ora, Deus não nos pôs neste mundo para que pereçamos como asnos e cavalos; ele nos deu uma alma, na qual esculpiu sua própria imagem”. Assim, pois, nos cumpre sempre laborar e aspirar a esta imortalidade celestial, especialmente nos esforçando e lutando contra todos os nossos sentimentos carnais, e não vivendo tão grudados aqui embaixo, que não nos esforcemos continuamente por quebrar e romper estas cordas que de tal modo nos prendem que não conseguimos volver-nos diretamente para Deus. Observemos, pois, o que aqui temos que aprender, a saber, que não sejamos como Esaú, dizendo: “Estou a ponto de morrer; de que me aproveitará o direito de primogenitura?”. O quê!? Faremos tal desonra à dignidade e nobreza que Deus pôs em nós, visto que ele nos dotou com almas imortais, para que confessemos que não somos deste mundo, que nosso lugar é lá no alto, e nosso direito está lá em cima, e entrementes descansaremos e nos deixaremos emaranhar aqui?
Assim, pois, ainda que pereçamos centenas de vezes, contudo tenhamos consciência de que Deus nos reservou uma vida muito melhor, e que existe nosso bem soberano ao qual devemos estimar; e a despeito de nossas carências, e de necessitarmos dos benefícios fugazes, os quais só servem para sustentar-nos aqui embaixo, contudo suportemos pacientemente e digamos sempre: “Se eu morrer, que não diga: Eu pereço; estou totalmente perdido e destituído!”. Pois a morte é apenas uma passagem de ir de uma vida para a outra. Devemos, pois, erguer os olhos para o alto, para lá. E esta é a suma do que temos de observar aqui.
Mas, seja como for, aqui vemos como Deus deu vazão à bestialidade de Esaú, e deu mostra de que já havia sido abandonado por ele [Deus], nem era governado por seu Santo Espírito, como os mais sábios deste mundo, ainda quando pareçam penetrar as nuvens, contudo são tão insensíveis e obtusos, que nada mais consideram além daquilo que está posto diante de seus olhos, e vivem totalmente para esse fim. Vejamos, pois, que os mais atilados, e aqueles a quem os homens engrandecem tanto, os quais nada mais fazem além de edificar suas casas. Ora, digo não só a edificar seus palácios prazenteiros, mas também a prover seus filhos de grandes rendimentos, para que sigam em frente, se tornem políticos, vivam no ócio, sejam temidos e honrados, e que o mundo inteiro se veja constrangido, por assim dizer, a passar através de suas mãos. E, entrementes, no que diz respeito a Deus, nem sequer se lembram dele, e são de tal sorte ingratos, que seria muito preferível que fôssemos porcos ou asnos do que nos assemelharmos a eles. Por quê? Porque os porcos são apenas dotados de seus apetites naturais; quando seu ventre está abarrotado, dormem, ou se espojam na lama; e vivem satisfeitos com isso. Os homens, porém, que desejos possuem? É certo que aí não se pode encontrar mais profundo lamento para os atormentar de modo ainda mais cruel do que seus próprios apetites. Assim, pois, por esta causa estão sempre a enfrentar contínua vexação e tormento, visto que nada mais buscam além desta vida. E, uma vez mortos, para eles é como se tudo estivesse morto. De modo semelhante, percebemos em todos os réprobos que não experimentam qualquer degustação da vida celestial. E, portanto, devemos tanto mais orar a Deus para que ele abra nossos olhos a fim de sempre vermos além destas coisas atuais, e para que nos mantenhamos nesta visão, de tal sorte que não nos prendamos aqui embaixo.
Jacó, porém, não satisfeito que Esaú simplesmente lhe vendesse sua primogenitura, exige algo mais dele: exige que ele jure. Isso, para Esaú, é indiferente. E aí vemos como Deus o lança aos pés de Jacó. Pois embora a fome o fustigasse tão severamente, a ponto de constrangê-lo a renunciar sua primogenitura, contudo, ao jurar, tomando o nome de Deus como testemunha, e protestando que Deus seria seu Juiz e o puniria, caso fosse perjuro e desobediente, não mantendo sua promessa, quando tudo isso é feito, sem ignorar qual era o valor de sua primogenitura, só lhe resta afirmar que o diabo o havia cegado completamente. Desse modo, pois, somos admoestados que, assim que começamos a afastar-nos e a volver as costas para Deus, tanto mais, inevitavelmente, nos tornamos calejados e empedernidos, já não tendo mais entendimento de Deus do que os animais irracionais. E, uma vez tendo nós, de tal sorte, renunciado a herança da salvação, sucederá que a renunciaremos centenas e milhares de vezes; sim, o diabo achará centenas de meios, num só dia, para mergulhar-nos no abismo da perdição, donde jamais seremos capazes de sair.
Observemos, pois, o que já notamos sobre este passo; mas, a propósito, temos de considerar a abstinência de Jacó. Aqui temos um exemplo do verdadeiro jejum, e não como os papistas imaginam. É bem verdade que na Santa Escritura se nos impõe que jejuemos, por diversos motivos. Pois o jejum serve para domar nossos impulsos carnais; e assim temos de suprimir nossa bebida e nossa comida, a fim de que a temperança que Deus requer de nós seja como um jejum contínuo, ao longo de todo o percurso de nossa vida; mas inclusive amiúde se nos impõe que diminuamos nossa ração. Para quê? Para que estejamos mais inclinados à oração. E, além disso, quando somos afligidos, então não há problema em fazermos banquete e grande festa; se Deus nos ameaça, nisso ele nos mostrará algum sinal de sua ira (no dizer de seu profeta), “Eu então vos convocarei para lamentardes e chorardes”; e, se soltarmos as rédeas de nossos desejos, é como se o desafiássemos à batalha e o desprezássemos. Notemos, pois, como o jejum serve para humilhar-nos diante de Deus, bem como para mostrar-nos quão miseráveis malfeitores somos, reconhecendo que o temos ofendido.
Demais, o jejum que aqui se menciona é aquele que leva o homem a abster-se, seja de bebida, seja de comida, se isso o impede de servir a Deus, e que o faça antes esquecer sua própria vida do que renunciar a vontade de Deus. Pois (como já dissemos) Jacó sofreu tanto quanto seu irmão. É bem verdade que ele até agora não tinha percorrido os campos e florestas, e permanecera em casa como costumava fazer; mas, a despeito disso, ele já tinha pronta sua refeição. Estava faminto e o alimento era apetitoso, mas, seja como for, ele preferira abster-se e privar-se, renunciando à sua refeição e, por assim dizer, sua própria vida, do que perder esta ocasião em que sua primogenitura poderia ser-lhe confirmada. Assim, pois, aqui temos de fazer uma comparação entre Jacó e Esaú, e extrair nosso proveito da exortação que já citamos, ou, seja, que não sejamos profanos. Mas, ao contrário, lemos de Esaú: “Ele comeu e bebeu, levantou-se e saiu” [v. 34].
À primeira vista, a linguagem aqui é simples, porém contém algo mais. Pois não bastava que ele dissesse que Esaú, sem nada mais em que pensar, esvaziou seu prato e se foi; senão que Moisés disse que ele comeu e bebeu, que tomou sua refeição em plena tranquilidade, e que estava bem saciado, como se sua primogenitura não lhe significasse nada. E esta é a conclusão que ele estabelece bem: “Assim, desprezou Esaú seu direito de primogenitura”.
Mas, antes de chegarmos aí, lemos que ele comeu, que bebeu, e que levantou-se e seguiu seu caminho. Nisto vemos que Esaú não se abalava com nada, mas se assemelhava a um cão que nada faz senão abanar sua orelha, depois de comer e beber. Então seguiu seu caminho e não polemizou sobre coisa alguma contra seu irmão, como, por exemplo, voltar atrás, depois de ponderar bem, como alguém que age inadvertidamente. Então se pondera: “O que eu fiz? O que aconteceu comigo? Fui longe demais nesse negócio!”. Esaú não pensa em nada disso; senão que abandona seu irmão após sentir-se saciado: levanta-se, de nada mais cuida. Ora, pois, temos aqui que ponderar como o diabo, depois que toma posse de uma pessoa, a torna insensível e obtusa, sem sentir em seu íntimo pesar algum, nem remorso, nem escrúpulo; ainda que perceba que foi cortada e banida do reino de Deus, contudo não se deixa comover.
Mas isto que toquei de passagem é expresso mais claramente nisto: sempre que enfrentarmos um mal após outro, e quando o diabo tiver nos enleado com suas redes, e nos tiver emaranhado bem nelas, jamais conseguimos desvencilhar-nos. Desta história, porém, devemos deduzir esta doutrina: que perenemente pensemos no que nosso Senhor Jesus Cristo disse: “Buscai, pois, em primeiro lugar, seu reino e sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” [Mt 6.33].
Ora, ao falar do reino de Deus, este não deve ser entendido apenas como uma referência à vida eterna, senão que também a compreende. Pois o reino de Deus é quando este é glorificado em nós; ele é servido e adorado; que somos seu povo; como também tem sido santificado por nós e em nós mutuamente, como falou disso pelos lábios de seu profeta Isaías: “Santificai o Senhor dos Exércitos, e ele vos santificará e será vossa força”. Portanto, quando nos esforçarmos para que Deus seja honrado, e lutarmos para que lhe sejamos dedicados, e sermos, por assim dizer, sacrifícios vivos, então todas as demais coisas nos serão dadas; equivale dizer (como Paulo também declarou), Deus se nos exibirá como Pai, tanto de nossos corpos como de nossas almas. Pois ele diz a Timóteo [1Tm 4.8] que, se andarmos no temor de Deus, pensando mais no céu do que na terra, “a piedade para tudo é proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser”. É bem verdade que as promessas pertencentes a esta presente vida são acessórios, isto é, nada mais que aquilo de que depreendem e dependem. Mas, tanto é que, se aprendermos da liberalidade de Deus, e nos esforçarmos por aquilo para o qual ele nos chamou, a saber, para a salvação que tão amorosamente nos adquiriu, por nosso Senhor Jesus Cristo, Deus não só se torna o Pai de nossas almas, mas também de nossos corpos. Estamos plenamente certos disto, e devemos viver nisto. Ora, pois, seja como for, devemos estar dispostos a renunciar esta presente vida, bem como todas as comodidades que aqui possuímos; se renunciarmos a própria vida, por uma razão mais forte que nossa própria vida. Ora, não podemos viver aqui sem comer e beber; porém ainda convém que estejamos prontos a sofrer fome e sede, antes que renunciar nossa vocação; e não só isso, mas quando a questão for a própria morte, devemos oferecer a Deus nossa vida, prestando-lhe esta homenagem, e sempre desejando antes uma morte preciosa e abençoada diante dele do que todas as vidas que se podem imaginar neste mundo, e sendo por ele amaldiçoados.
Eis, pois, a regra que é dada a todos os cristãos, e por ela são testados se de fato são filhos de Deus; e isso se dá quando o mundo os impede de servirem a Deus, mas sempre marcham em frente por aquela vereda que lhes é mostrada pela Santa Escritura. Quando digo que o mundo não os impeça, minha intenção não é só aquelas luxúrias malignas, como embriaguez, devassidão, avareza e coisas semelhantes; mas também aqueles desejos que não são totalmente condenados, como comer e beber, quando nos são permitidos por Deus. E, no entanto, se comer e beber nos estorvam de servir a Deus, então devemos lutar para que tais desejos sejam domados. Ora, para que isto seja mais bem entendido pela experiência comum que temos, digamos que uma pessoa, para que viva em deleites e prazeres, ela tem que comer até ficar satisfeita, sim, com toda espécie de guloseimas e petiscos, bem como comidas exóticas; ela dependuraria sua consciência (como dizem) num cabide, ou, melhor, a deixa profanar-se com o mundo perverso. Pois há muitas condições oferecidas a muitos que são como os atraentes engodos de Satanás. Por isso pensarão: “Oh, se eu estivesse em tal lugar, poderia ajuntar uma grande porção de coisas boas; mais tarde, eu seria grandemente honrado, o mundo inteiro se inclinaria diante de mim. Nesse meio tempo, eu teria minha mesa bem munida; e assim eu poderia saciar meus desejos; sim, e em minha velhice, quando tiver minha subsistência e proventos, estaria certo de viver em tranquilidade. Mas, não o posso atingir. Mas, a quê tende isto? Até agora não pude fazer isso sem correr grande risco, sem induzir-me a grande perversidade, sim, e sem alienar-me de Deus. Seja como for, não posso servir a Deus simplesmente como ele me ordenou”.
Mas, se alguém for tentado a agir assim, é indubitável que o mesmo estará a imitar Esaú, caso escolha esta condição, a qual será mais condizente com o mundo, e, entrementes, abandona os meios de servir a Deus e de viver em paz e tranquilidade, com uma boa consciência. Pois o mesmo não leva em conta isto: “Eu sou fraco e tenho o que fazer para manter-me no temor de Deus, ainda quando a cada dia sou exortado contra tal comportamento; sim, e ainda quando eu me entregasse totalmente à sua obtenção, e me esforçasse ao máximo, o que será de mim quando não possuir mais a palavra de Deus, a qual já não me exorta a cumprir meu dever, e já me acho tão emaranhado com muitos negócios e atividades mundanos?”. Se alguém não pensa exatamente assim, não escolhe uma mesa farta, isto é, se escolhe antes uma propriedade com a qual possa enriquecer-se, é evidente que se assemelhará a Esaú. Em contrapartida, quando pensamos: “Veja bem, sem dúvida viveremos bem e tranquilamente, mesmo que abandonemos a Deus, ou, melhor, nos afastemos dele, e recuemos do bom caminho, contanto que não seja muito”. Será assim? O diabo daqui a pouco achará novos deslizes, e por fim nos conduzirá à perversidade definitiva, de tal sorte que seremos pessoas desesperadas.
No entanto, evitemos tal risco; e, em preferência, amemos a fome e a sede, sim, e desejemos comer bem, sem apego à pompa e grande superfluidade. Escolhamos, antes, repito, não possuir uma propriedade grande demais, e mantenhamo-nos na sobriedade, do que ser ricos e abastados, e, ainda assim, esquecer de nós mesmos e de cultivar toda nossa alegria aqui embaixo. Quando nos comportarmos assim, neste respeito, então seguimos o exemplo de nosso pai Jacó. Mas, como eu já disse, a questão não é apenas de renunciar nosso ócio e comodidade, mas também, quanto for necessário, de nossa própria vida. Pois, se assim for, estejamos prontos a morrer a fim de apresentar a confissão de nossa fé, tal como Deus no-lo impõe, e glorificar o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, sem olhar para trás; devemos igualmente esquecer também nossa própria vida, e tudo quanto lhe pertence. E, se não agirmos assim, revelamos que não sabemos o que significa degustar as bênçãos espirituais; se já não perdemos todo o sabor delas, porquanto o diabo já nos embriagou com suas peçonhas, nos enfeitiçou e nos tornou insensíveis e obtusos.
Vemos aqui, a propósito, quão proveitosa nos é esta história. Pois, além do que já dissemos, a saber, que Deus ratificou sua eleição, e pôs em realce aquilo que estava em Esaú e em Jacó, aqui nosso pai Jacó nos estende sua mão e nos mostra que todos os prazeres deste mundo devem ser-nos como nada, nem nossa própria nutrição, quando a questão for de sermos pessoas tão pobres e esfomeadas, que preferimos esquecer de comer e beber; quando estivermos prontos, sim, especialmente quando o cheiro nos provocar de tal modo que imaginemos já termos os nacos em nossas bocas, e já os deglutimos, quando, não obstante, estamos tão longe deles, que deflagramos tão ferrenho combate contra nós mesmos, que renunciamos nossa inclinação natural e, especialmente, aquilo que não é totalmente condenado entre os homens, se tal coisa nos impede de irmos a Deus, se nos atrapalha e nos emaranha aqui embaixo em alguma corrupção. Eis o que devemos fazer: que, por outro lado, sejamos em extremo prudentes para não nos assemelharmos a Esaú, e que não aleguemos isto ou aquilo, como muitos fazem: “Oh, temos de viver!”. Bem que podemos apresentar nossas escusas diante dos homens, mas quando chegarmos para prestar contas diante daquele grande Juiz, o qual nos declarou que quer que tenhamos o tesouro de nossa salvação, a qual ele nos ofereceu no evangelho, em tal preço, que aprendamos a ser arredios do mundo; e que tudo quanto ele contém nos seja uma nulidade em comparação com ela.
Mas tal coisa é praticada de modos e maneiras variados. Pois quando o cristão tiver abundância, se for sóbrio na comida e bebida, e não empanturrar-se tanto que perca seu senso e memória, mas estiver sempre disposto a louvar a Deus a fim de cumprir a incumbência para a qual ele é chamado, e empregar-se naquilo que pertence à sua condição e vocação; se um homem for temperante, então se assemelha a Jacó. Pois ele se esquece de comer e beber, não porque não se utilize dos benefícios que Deus depositou em suas mãos, mas os esquece para refrear seus desejos, a fim de não exceder a medida; e, depois de elevar-se continuamente ao alto, leve em conta o serviço de Deus e o prefira antes que qualquer coisa profana. Além disso, caso seja necessário que o que era rico se torne pobre, e que prefira antes ser pobre, sim, mesmo que seja para comer apenas raízes, se necessário for, tudo isso é preferível a alienar-se de Deus. E que permaneça sempre firme nesse ideal, dizendo: “Conquanto eu sou um herdeiro do mundo, devo viver bem contente; e agora, se enfrentar fome e sede, se suportar quaisquer necessidades e misérias, rogarei a Deus que me dê paciência”. E nisto está a razão por que Paulo também afirma [Fp 4.12] que aprendera, na escola de nosso Senhor Jesus Cristo, a passar fome e a viver saciado; ou, seja, quando tinha fartura, ele não se prendia a ela; e, quando tinha escassez, era paciente em sua carência. Ele recorria a Deus e decidia antes sofrer muita carência, no que respeita ao mundo, do que ter com que crescer e enriquecer-se e, contudo, ser vazio dos benefícios celestiais.
Pois, sem dúvida, Esaú tinha sua alma sepultada no ensopado que ora mirava ali, sentia seu suave aroma e aí punha seu nariz. E por qual motivo? Porque nada mais tinha em consideração do que esta presente vida. Porquanto sua alma se achava sepultada nela. Ora, nós podemos ser açambarcados por todos os bens deste mundo, contudo compete que seu aroma não nos fascine tanto que deixemos de estimar as coisas espirituais muito acima dele, e tê-las sempre em preferência. Notemos, pois, sucintamente, como devemos aplicar esta doutrina para nosso proveito.
E, além do mais, observemos bem aquilo que é expresso aqui: que a perversidade de Esaú se revela no fato de não dar nenhum valor à sua primogenitura. E, portanto, este é um sinal de que desconsideramos as graças de Deus e, como alguém diria, as arrojamos ao chão e as pisamos sob a planta de nossos pés, quando nos apegamos demasiadamente seja a esta vida, seja aos nossos desejos; e quando nada toleramos, e nada suportamos, mas queremos ter tudo aquilo que nos apraz segundo a carne. Quando, pois, quisermos de tal sorte manter nossas concupiscências, é indubitável que estamos fazendo pouco caso daquela herança celestial. Pois quando esta terá nossa estima? Será quando (como eu já disse) o mundo for para nós apenas como acessório, e tudo quanto se acha nele não passar de um mero apêndice. O evangelho, porém, e as promessas que estão contidas nele, pelas quais Deus nos testifica que já nos adotou, e igualmente como ele quer nos ter para si. Isto deve remontar muito acima delas, e devemos ser arrebatados nelas. E, mesmo assim, estejamos de sobreaviso. Pois, uma vez tenha o diabo surrupiado isto de nós, nos tornamos bestiais em nossos prazeres, nada mais nos porá na mente senão buscar apenas esta vida fugaz, e nada faremos senão correr para lá e para cá como pobres animais, sem ter com que acertar o alvo, como sucedeu a Esaú. E eu já disse que estas palavras não são expressas em vão: “Ele comeu e bebeu, levantou-se e saiu”. Em companhia de quem nos vemos hoje? Pois aqueles que se deleitam nos costumes do mundo nos terão por desprezíveis idiotas, e desdenharão de nossa simplicidade. “Muito bem”, dizem, “que fiquem com seu evangelho, e mesmo assim morrerão de fome; e vivam de tal modo que não tenham sequer um trapo com que se cobrir, e que não tenham nada para pôr entre seus dentes; ou, melhor, que se definhem e abaixem suas asas, e sejam tão miseráveis, como não é possível a mais ninguém; e que se regozijem em seu evangelho, quanto desejam; nós, entrementes, continuaremos nosso vai-e-vem neste mundo; satisfaremos nossos desejos; e nossa mesa será bem ornamentada”.
E, acima de todos esses desprezadores de Deus, os quais são, em nossos dias, exaltados em posições e dignidades, sabe-se bem como nos escarnecem, e agitam suas línguas, se os homens lhes falam do evangelho; para eles é como se fôssemos dementes, que nem podemos discernir entre o bem e o mal. Por quê? Porque comem, bebem e se levantam, e seguem seu caminho. Sim, o mundo os mantém assim; ou, melhor, Satanás de tal modo os possuiu, que para eles o céu não significa absolutamente nada, e passaram a ignorar totalmente a vida celestial. Observamos isto, e contudo de nada adianta apoquentar-nos. Pois nosso Senhor pôs diante de nossos olhos ser uma horrível condenação quando caímos em tal obtusidade, preferindo esta vida que nada mais é que uma sombra em face da eternidade, para a qual Deus nos chamou. Pois, mesmo que vivêssemos cem anos após nossa morte, e o que seria isso? Se o compararmos (no dizer de Paulo) com este mundo, a vida aqui não passa de um momento, e uma figura que logo se desvanece e logo passa.
Ora, por outro lado, que peso deve ter para nós nossa imortalidade, a qual nos é oferecida em nosso Senhor Jesus Cristo, e da qual ele quis certificar-nos bem! E, no entanto, concernente a esta vida, quem é que pode prometer-nos um dia a mais? Pois aqueles que são bem alimentados se fortalecem e não podem ser preservados sequer por um minuto; e, especialmente, a intemperança abala a muitos. E notamos que os homens, por mais que tenham com que fazer o bem, contudo se matam. E, não obstante, nesse meio tempo, não conseguimos viver contentes, mas (como pobres animais) vivemos buscando aquilo que não propicia nenhuma certeza; e, no mover de uma mão, tudo é perdido. Não obstante, buscamos isto e em seguida nos é dado, sim, totalmente entregue, ainda quando nada discernimos entre aquilo que é permanente e o que logo se desvanece. Pois se desdenharmos daquilo que é eterno, então para onde vamos? É indubitável que os mais perversos dirão que isto é uma demência; mas, depois de o haver dito, demonstram que estão perdidos, e que sua vida já se esvaiu.
E este é um vício tão comum, que é preciso que os mais perfeitos lutem especialmente contra ele. E o apóstolo, não sem motivo, diz: “Não haja profano”. Diz isso para que sejamos vigilantes e nos lembremos quem somos, e que não sejamos tão brutos a ponto de repousar nesta presente vida. Assim, pois, sigamos em frente, e aquilo que nos é dado aqui seja aplicado para nosso auxílio, para fazer-nos correr mais depressa; mas se houve algo que nos estorve, sim, como se fosse nosso próprio olho (como diz nosso Senhor Jesus Cristo, Mt 5.29), então que seja arrancado, e que desejemos entrar no reino de Deus cegos, do que termos todas as nossas faculdades sadias e enfrentar a destruição eterna. Assim, pois, concluindo, amemos antes a fome e a sede do que encher e empanturrar nossos estômagos, sem levar em conta a vida eterna. Pois não devemos participar dessas coisas corruptíveis e fugazes de tal sorte que não consigamos elevar nossos sentidos e afetos ao alto, para que, através da esperança, sejamos cidadãos do reino celestial.
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About Sermões Sobre Eleição e ReprovaçãoEsta coletânea de sermões a partir do livro de Gênesis lida com um tema glorioso que, ao longo das eras, tem sido por vezes mal interpretado e ignorado da maneira mais injusta, e, na maioria dos casos, vergonhosamente negado e combatido. Calvino conduz o leitor destes sermões ao entendimento correto dessa doutrina profunda, fazendo com que encare a verdade bíblica da soberania do Criador e compreenda que Deus é Deus, de modo que não precisa apresentar justificativas ao homem nem lhe explicar o poder que o Oleiro tem sobre o barro, quando molda, para desonra, os vasos de ira preparados para a destruição. Embora nem todos os sermões tratem explicitamente sobre a predestinação, todos eles são profundamente doutrinários e práticos. Ao longo de todas as exposições, assim como em toda a teologia de Calvino, encontra-se o tema que perpassa todas as coisas: a soberania do Deus e Pai de Jesus Cristo. Esta soberania é o propósito e poder divinos governando todas as coisas que acontecem, a desobediência do réprobo e, de igual modo, a obediência do eleito, tudo para a glória de Deus na salvação da igreja de Jesus Cristo. Seguindo o apóstolo Paulo em Romanos 9, João Calvino via na história inspirada de Jacó e Esaú a revelação da predestinação eterna de certos indivíduos para a salvação, e de outros para a danação eterna. |
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